Por esses dias, tive a oportunidade de assistir no cinema, na telona e com som de primeira como tem que ser, ao documentário “Milton Bituca Nascimento” (direção de Flávia Moraes). O filme mostra os bastidores da turnê de despedida de Milton, batizada de “A última sessão de música”, sobre a qual já escrevi aqui na ocasião do show de encerramento no Mineirão (leia em bit.ly/42dyZzC). Ao Milton Nascimento, um gênio da música cujos encantos superaram o território brasileiro, toda homenagem é merecida. E esse documentário, definitivamente, precisa ser visto por todos, fãs ou quem só conhece a obra do artista superficialmente. Ainda assim, acho que algumas oportunidades foram perdidas e creio que há espaço até para outro documentário que trate de alguns tópicos com mais profundidade.
O filme acompanha toda a movimentação do artista ao longo de uma estafante turnê com dezenas de shows ao redor do mundo, ando por Portugal, Inglaterra, Itália, Estados Unidos e, é claro, o Brasil. Enquanto percorre o trajeto, o filme conta com a competente narração de Fernanda Montenegro e vai sendo entrecortado por depoimentos. Alguns do próprio Milton, contando momentos de sua história e trajetória, alguns de pessoas próximas e uma série de depoimentos de músicos dos mais diversos estilos. Para quem não conhece o trabalho de Milton muito bem, os depoimentos dão ideia de sua grandeza e influência.
Entre os artistas brasileiros rendendo homenagens, temos nomes consagrados, como Chico Buarque, Ivan Lins, João Bosco e Caetano Veloso. E ainda há representantes de gerações mais novas, como Maria Gadu, Criolo e Djonga, que mostram que Milton continua a inspirar. Finalmente, grandes nomes do jazz, tais como Herbie Hancock, Stanley Clark e Pat Metheny, deixam claro como a música e harmonias inovadoras de Milton romperam fronteiras e conquistaram seguidores mundo afora. Para nós fãs, é muito legal ver toda essa nata da música brasileira e mundial se curvar para Milton.
O tom laudatório do documentário, porém, leva a algumas armadilhas. Entendo perfeitamente que o objetivo era ser um “filme de estrada”, mostrando o caminho percorrido por Milton em seu último giro como se estivesse seguindo sua imortal canção “Nos bailes da vida”. E não falta coragem para Milton expor na tela toda sua fragilidade física e saúde debilitada, o que é o aspecto mais humano e emocionante do filme. Por outro lado, a profusão de depoimentos de músicos de alto calibre transforma Milton em uma criatura quase divina e inatingível. Quero deixar claro que todo elogio ao Milton é merecido, porém isso praticamente transforma o filme em uma hagiografia, texto que conta a vida dos santos.
Com isso perdeu-se uma oportunidade de contar melhor de onde veio a música de Milton. Da sua infância em uma cidade do interior, onde só se tinha o às músicas via rádio, até chegar no Clube da Esquina, onde um caldo de influências criou algo original. Houve um caminho percorrido e pouco foi falado dele. E creio que o próprio Clube da Esquina teve pouquíssimo espaço e ou-se uma ideia de que seus artistas seriam meros coadjuvantes na carreira de Milton. Ainda que Milton tenha sido o grande expoente do Clube e, por já ter uma carreira consolidada na época, ter sido quem abriu o caminho da gravadora para os demais, a influência mútua e interação com Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e outros – além dos letristas Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos, é claro – foi decisiva na construção da identidade de Milton como artista. Para quem quiser se aprofundar no assunto, recomendo dois excelentes livros: “Os Sonhos Não Envelhecem”, de Márcio Borges, e “A Música de Milton Nascimento”, de Chico Amaral.
Mesmo com esse reparo, o documentário é muito bonito e emocionante. Não só me levou às lágrimas durante todo o filme, mas também rendeu uma longa sessão de palmas ao seu final. Recomendo, para quem puder ver no cinema, pois o som faz bastante diferença. De todo modo, deve estar disponível em breve em algum streaming.